Genodermatoses

20/08/2012 23:04

 

As genodermatoses correspondem a um grupo heterogêneo de dermatoses de natureza hereditária, que afetam única ou principalmente a pele. Instalam-se durante a concepção por mutação espontânea ou por genes anormais, porém nem sempre se manifestam ao nascimento. Possuem grau variado de gravidade e podem ser agrupadas de acordo com o tipo de herança ou pelas principais características clínicas. Algumas genodermatoses são gravemente incapacitantes ou mesmo letais. Darei ênfase em dois grupos de genodermatoses: as ictioses e a epidermólise bolhosa.

Epidermólise Bolhosa

Compreende um grupo de afecções bolhosas hereditárias, com diferentes quadros clínicos e diferentes modos de transmissão genética. Ambas as formas, possuem em comum uma especial fragilidade cutânea que leva a formação de bolhas aos mínimos traumatismos. Na maioria dos casos, são decorrentes de mutações de proteínas envolvidas na aderência dermoepidérmica. Possui mais de 20 variantes clínicas que são agrupadas em 3 grupos principais, de acordo com local de clivagem das bolhas: epidemólise bolhosa simples, epidemólise bolhosa juncional, epidemólise bolhosa dermolítica. O exame mais utilizado atualmente para o diagnóstico e diferenciação das epidermólises bolhosas é o imunomapeamento, porém o melhor recurso diagnóstico laboratorial ainda é a microscopia eletrônica.

Epidermólise bolhosa simples

Todas as variantes são de herança autossômica dominante e a clivagem ocorre na epiderme, sendo também chamada de epidermólise bolhosa epidermolítica. As bolhas são serosas ou sero-hemorrágicas e não deixam cicatriz. O aspecto histológico mais comumente encontrado é a clivagem dos segmentos inferiores da epiderme.

Subtipos:

- Epidermólise bolhosa simples generalizada de Koebner: as primeiras manifestações surgem ao nascimento ou logo após, em áreas de pressão ou trauma, como mãos, pés, joelhos, cotovelos e coxas. As bolhas são tensas, com conteúdo seroso ou hemorrágico e evoluem para cura sem deixar cicatriz. Formas mais graves podem apresentar cicatrizes discretas, leves lesões de mucosa oral e espessamento ungueal. Não há comprometimento do estado geral. O tratamento consiste no uso de roupas e calçados adequados, visando minimizar as pressões sobre a pele e uso de curativos com óleos com ácidos graxos essenciais ou óleos minerais e vegetais com posterior colocação de gazes não aderentes ou curativos siliconados ou hidrocolóides não aderentes. Usar antibióticos apenas se houver infecção secundária, nunca de forma profilática.

- Epidermólise bolhosa simples localizada de Weber: variante autossômica dominante, na qual as bolhas acometem exclusivamente mãos e pés.  O tratamento consiste no uso de curativos idênticos aos utilizados na generalizada e uso de sapatos que ofereçam o menor traumatismo possível. Anti-sépticos e antibióticos tópicos devem ser usados quando necessário, já que a infecção secundária é frequente. O prognóstico é benigno e as lesões diminuem com a idade.

- Epidermólise bolhosa simples de Dowling-Meara (herpetiforme): variante autossômica dominante cujas manifestações surgem nos primeiros dias de vida e se caracterizam pelo aparecimento de vesículas e bolhas no tronco e extremidades, por vezes com disposição herpetiforme.

- Epidermólise bolhosa simples com distrofia muscular tardia: As bolhas estão presentes ao nascimento e são generalizadas. Mais tardiamente manisfesta-se a fraqueza muscular.

Epidermólise bolhosa juncional

Compreende um espectro de doenças cuja forma de herança é autossômica recessiva. A clivagem ocorre abaixo do queratinócito basal, na lâmina lúcida.

- Epidermólise bolhosa juncional variante herlitz: anteriormente denominada epidermólise bolhosa letal, caracteriza-se pelo aparecimento de bolhas serosas e hemorrágicas e erosões exsudativas sangrantes de difícil cicatrização, disseminadas desde o nascimento. Há acometimento de mucosas e as unhas podem estar ausentes ou espessadas. Pode ocorrer retardo do crescimento e anemia, por conta dessas alterações em associação com as perdas proteicas através da pele. Lesões em couro cabeludo podem evoluir com alopecia e alterações dentárias também são observadas O prognóstico é grave, e muitas vezes leva a morte dentro dos dois primeiros anos de vida. As principais causas de morte são septicemia e obstrução traqueolaríngea. A terapia assemelha-se aos demais tipos de epidermólise e consiste principalmente em medidas de prevenção da formação de bolhas e o uso de curativos para uma melhor cicatrização e prevenção de infecção secundária. As bolhas podem ser esvaziadas por uma agulha estéril, para diminuir a dor e acelerar a cicatrização. Devido as outras alterações associadas, aconselha-se o acompanhamento com dentista, oftalmologista, gastro-pediatra e nutricionista.

- Epidermólise bolhosa juncional variante não-herlitz: as lesões inician-se ao nascimento e caracterizam-se por bolhas sero-sanguinolentas que ocorrem predominantemente nas extremidas e couro cabeludo. Ocorre distrofia ungueal, lesões de mucosa e alterações dentárias. Geralmente tem boa sobrevida e poucas alterações sistêmicas. O tratamento é semelhante ao dos demais tipos de epidemólise bolhosa.

Epidermólise bolhosa epidermolítica

A transmissão pode ser dominante ou recessiva, sendo distintos os quadro resultantes. A clivagem ocorre na sublâmina densa.

- Epidermólise bolhosa distrófica dominante: inicia-se precocemente, embora existam casos de aparecimento tardio. As lesões são bolhas tensas, serosas ou hemorrágicas e placas eritematosas, nas quais o trauma não foi suficiente para indução de bolhas. Localizam-se predominantemente nas extremidades. Com a evolução surgem as alterações distróficas, cicatrizes ocasionalmente hipertróficas, hiper ou hipopigmentação e cistos tipo milium. Podem existir lesões de mucosa oral, porém a mucosa esofágica nunca é atingida e os dentes são normais.

- Epidermólise bolhosa recessiva: as lesões estão presentes desde o nascimento como bolhas hemorrágicas e erosões que afetam a pele e as mucosas. Com a evolução surgem cicatrizes e cistos tipo milium. As lesões de mucosa oral determinam o aparecimento de cicatrizes sinequiantes, que dificultam a nutrição. Lesões esofágicas podem resultar em estenoses graves. Há alterações nos dentes. As lesões de mucosa intestinal levam à dificuldade absorção, anemia e retardo do crescimento. As mãos e pés podem apresentar-se notavelmente deformados, com pseudosinéquias e até fusão total dos dedos. O prurido é constatente, o que aumenta a possibilidade de infecção secundária das lesões. O prognóstico é ruim.

O tratamento é consiste em medidas gerais de proteção aos traumas cutâneos, curativos, cuidados dentários e dietas, e é semelhante ao adotado nas demais formas de epidermólise bolhosa. Devido a grande dificuldade para se alimentarem, principalmente nos doentes com a forma recessiva, pode ser necessário uso de sonda nasogástrica ou até mesmo gastrostomia para permitir adequada ingestão alimentar. É imprescindível o cuidado na prevenção de pseudosinéquias entre os dedos através do uso de luvas não aderentes. O tratamento das sinéquias é feito através de cirurgia corretiva.

Ictiose congênita

Ictiose deriva da palavra grega ICTHYS que significa "peixe" e se refere ao aspecto escamoso da pele dos pacientes portadores desta entidade. O termo ictiose congênita abrange um grupo heterogêneo de doenças hereditárias que têm em comum a descamação da pele, originada em perturbações do processo de diferenciação (cornificação) sofrida pelos queratinócitos. Defeitos em diferentes etapas e aspectos deste processo promovem um resultado similar: camada córnea anormal, descamação, eritema e hiperceratose.

A doença pode estar presente ao nascimento, apresentação conhecida como bebê colódio, ou manifestar-se na primeira infância. A pele ictiótica, embora espessada, tem função barreira deficiente. Há também aumento das perdas hídricas transepidérmicas, diminuição da secreção sudoral e menor tolerância ao calor. Pode haver dificuldade de síntese de vitamina D, originado raquitismo.

Em algumas formas há acometimento exclusivo da pele, enquanto em outras, o estado ictiosiforme se associa a malformações e manifestações sistêmicas. Podem ser distinguidas, por questões de ordem clínica, histopatológica e genética, em:

 

  • ictiose vulgar;
  • ictiose bolhosa de Siemens;
  • ictiose ligada ao cromossomo X;
  • eritroceratodermia
  • síndrome de Sjögren-Larsson;
  • síndrome de Netherton;
  • doença de Refsum;
  • síndrome de Tay (tricotiodistrofia);
  • ictiose lamelar (eritrodermia ictiosiforme não bolhosa congênita);
  • hiperceratose epidermolítica (eritrodermia ictiosiforme bolhosa congênita).

Formas não sindrômicas

Ictiose vulgar é a forma mais comum e tem incidência de 1:250 nascimentos. É herdada num padrão autossômico dominante e se apresenta no primeiro ano de vida. A mutação ocorre no gene FLG, que codifica a proteína epidérmica filagrina, responsável pela agregação de filamentos intermediários de queratina. Clinicamente há escamas finas que predominam nas áreas extensoras dos membros inferiores. Há associação com atopia bem como com ceratose pilar. Raramente ocorre hiperidrose, e o quadro clínico tende a melhorar no verão. A histopatologia é de hiperceratose com hipogranulose ou agranulose.

 

A hiperceratose epidermolítica, ou como antes era denominada, eritrodermia ictiosiforme bolhosa congênita, tem incidência de 1:300.000 nascimentos e é transmitida em um padrão autossômico dominante. O defeito ocorre nas queratinas dos tipos 1, 2 e 10. A doença geralmente manifesta-se ao nascimento, com bolhas, eritema e descamação e evolui para hiperceratose com ou sem eritrodermia. A histopatologia neste caso é específica e geralmente confirma o diagnóstico. Verifica-se hiperceratose

 

A ictiose ligada ao cromossomo X tem incidência de 1:2.500 nascimentos de meninos e seu padrão de herança é recessivo. A mutação ocorre no gene STS, que codifica a enzima esteroide sulfatase. As escamas são maiores, formando placas que acometem predominantemente regiões extensoras, mas podem afetar áreas flexoras. Observam-se opacidades corneanas em metade dos pacientes adultos6. A histopatologia apresenta hiperceratose em ortoceratose e camada granular normal.

 

A ictiose lamelar tem incidência de 1:200.000-300.000 nascimentos, igual distribuição entre os gêneros e envolve uma mutação no gene TGM1 no cromossomo 14.  É aparente ao nascimento, e o neonato geralmente está envolvido por uma membrana de material córneo que descama nos primeiros 10-14 dias (bebê colódio). Após esta fase, aparece um eritema difuso que evolui para escamas espessas, às vezes escuras, que se distribuem num padrão em mosaico por toda a superfície corporal com predomínio em áreas flexoras. Ocorrem ectrópio e eclábio associados a distrofias ungueais e alopecia. É comum hipoidrose em graus variados. A histopatologia da ictiose lamelar é hiperceratose com normogranulose ou hipergranulose.

 

Diagnóstico

 

Na maioria dos casos o diagnóstico é clínico, podendo ser realizada biópsia de pele. Técnicas de biologia molecular são usadas para estudo das mutações.

 

Tratamento

 

O tratamento visa hidratação, lubrificação, queratólise e modulação da diferenciação celular epidérmica. Podem ser utilizados cremes e loções emolientes, hidratantes, queratolíticos tópicos ou medicações sistêmicas.

O tratamento tópico usualmente é satisfatório nas ictioses vulgar e ligada ao cromossomo X e em alguns casos de eritrodermia ictiosiforme congênita. Podem ser utilizadas formulações contendo ureia a 10%, ácido lático a 10%, lactato de amônia a 12% em creme ou loção para aplicação no corpo após o banho. O propilenoglicol pode ser utilizado em solução aquosa a 20-30%. Nas palmas e plantas pode-se utilizar ureia a 20% em cremes ou propilenoglicol a 50% em água destilada ou ainda formulações contendo ácido salicílico em concentrações queratolíticas.

O tratamento com retinóides sistêmicos (acitretina e isotretinoína) são instituídos nas formas graves, como a ictiose lamelar, hiperqueratose epidermolítica e formas mais intensas de eritrodermia ictiosiforme congênita.

Infecções fúngicas e bacterianas são comuns e devem ser tratadas especificamente com antibióticos e antifúngicos tópicos ou sistêmicos.

Por Mariana Bastos

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